sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Neguinha


“Temos uma caixa de brinquedos, temos uma caixa de brinquedos”. Garganhadas por todos os lados. Cantando sem parar, subia correndo as escadas do prédio, enquanto ele carregava a “caixa de brinquedos”. Claro que a síndica não ia permitir ter um Dálmata no apartamento, mas eu estava louca pra dar nos dedos dela por reclamar tanto dos aviõezinhos de papel higiênico que jogávamos na sacada dos vizinhos. Tinha vontade de morder aquele nariz que sempre andava empinado.

Chegamos no quarto andar, pulei entusiasmada pelo novo animal de estimação que saia meio zonzo da caixa de papelão. Era lindo, filhote, mais ou menos uns 3 meses de vida. As pintinhas ainda surgindo no seu pelo branquíssimo. Meus olhos brilhando. Até tinha esquecido um pouco da neguinha.

Sentada dentro da lareira, meu corpo pequeno ainda deixava alguma folga entre aqueles tijolos encarvoados e frio. Eu descalça e de calção soltinho com um pequeno sorriso maroto nos lábios, alisando os cabelos da neguinha. Ela só tinha uma roupa que provavelmente não era dela, mas entre tantas bonecas, ela era minha preferida. Não lembro direito do dia que a ganhei mas repousava sobre um cestinho trançado de cor rosa claro. Sua pele bronzeada contrastando com a minha muito branquinha. Café com leite.

Pedi uma lima pra empregada, esta mesmo que não cansava de correr em círculos atrás de nós para dar uma boa lição. Claro que sempre corríamos mais que ela, a deixando exausta desistindo do castigo. Levei a neguinha dentro do seu cestinho até o banheiro de cima. Aquele que tinha o box cheio de brinquedos quase até o teto. Subi a montanha colorida e devo ter pisado no pepino se não me engano. Sentei lá em cima comendo a lima. A neguinha se misturando com os outros brinquedos.

Não sei como ela se foi, nem o dia. Mas a minha companheira, a minha neguinha, desapareceu. Aos prantos sinceros corria pra todos perguntando se tinham alguma notícia dela. E então ela disse. A neguinha tinha sido doada. Seria eu capaz de suportar aquela dor. A minha neguinha nunca mais voltaria e nunca mais voltou, deixando apenas a saudade e as lembranças de infância ao lado dela.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Aquele mesmo Harry de sempre

Era fim de ano. As ruas coloridas e musicais, embaladas pelo clima natalino. As pessoas estampando sorrisos e corações solidários. Eu no meio delas respirando aquele ar contente, um sopro suave. Queria pega-lo, abraçá-lo. Mas só sentia o seu cheiro doce.

Caminhava devagar, meus olhos eram atraídos por aqueles sininhos cheios de cores e sons pendurados nas beiradas das lojas. Parecia festa de criança. Olhei para o céu. Azul, infinito. Imaginei balões percorrendo aquelas nuvens de algodão. Senti vontade de pular nelas. Me peguei sorrindo.

As fitinhas da sorte no meu pulso. Umas duas ou três, pra não perder o costume. Agora o sol estava ficando com sono, quase se pondo. Aquela brisa fresca sobre meus ombros, se aprumando delicada. Me sentia leve. A noite vinha sem pressa, deitando seu manto negro sobre as estrelas. Mal me dei por conta de que estava quase chegando em casa.

Aqueles pinheiros enfeitados na sala, cheios de cartões que desejavam boas festas. Pisca-piscas iluminados e brilhantes. Fiquei uns segundos contemplando a sequência das luzes. Elas pareciam fazer um espetáculo só pra mim. Dançavam ao som de alguma música que eu conhecia,e quase as aplaudi.

Ele estava me esperando repousado sobre a poltrona. Quieto. Mágico. Azul. E, assim como todo fim de ano, eu saboreava suas linhas, viajava pra outros mundos me sentindo parte de toda aquela fantasia. Era ele. Harry Potter e a Ordem da Fênix. Lia as suas quinhentas e tantas páginas como se fossem vinte. Preparei um café e o saboreei como se fosse cerveja amanteigada.    

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Metrô de Madrid



Madrid/Espanha

Tínhamos acabado de sair do Starbucks depois de uma rodada de café gelado com calda de caramelo. Os vapores fumegantes e o ar sereno ainda na minha mente. A chuva havia cessado, serviu apenas para nos enxarcar. Nós duas sozinhas e toda a esplendorosa Madrid ao nosso redor. Era mais ou menos 1 da madrugada.

Aquelas ladeiras infinitas nos confundiam, e, sem algum mapa junto, apostamos na sorte de encontrar uma estação de metrô para voltarmos ao nosso alojamento. A Jornada Mundial da Juventude havia terminado, as ruas que antes eram infestadas de jovens com bandeirinhas de seus países, agora apresentavam poucas pessoas. Estas andavam rápido e tinham expressões suspeitas.

Eu e ela caminhamos ligeiro, o último metrô saia a 1:30 da madrugada, e não poderíamos perder de maneira alguma. Mal sabíamos chegar até a estação, quanto mais ir apé até Pozuelo de Alarcón. Isso estava fora de cogitação. Dois homens passaram por nós, pareciam nos seguir. Apuramos o passo e um deles assoviou, nos fazendo olhar para trás e parar de caminhar.

De maneira nada escrupulosa, um deles nos convidou para "tomar uma bebida" em um bar mais tarde. Apenas fomos educadas ao recusar o "convite" e olhamos uma para outra sorrindo. Acho que estávamos pensando a mesma coisa.

Fomos aos tropeços pedindo informações até que achamos uma estação de metrô. O último trem estava a postos, abarrotado de gente. Pulamos as catracas e num risco subimos para o nosso destino. Havia um homem, mais ou menos quarenta anos, cabelo escuro, baixinho e falante. Parecia estar conversando com duas mulheres sentadas a frente dele.

Ele falava em português e eu e ela quietinhas escutando. Poderia valer a pena. Conversava alto e sobre algumas coisas de seu trabalho. As mulheres apenas riam com dentes brilhantes e brancos. Quase como propaganda de pasta de dente. Pouco depois fomos surpreendidas com um comentário dele. Ouvimos algo como "olha estas duas branquelas aqui do meu lado, parecem uns peruzinhos".

Olhei para ela, ela olhou para mim. As mulheres gargalhavam a nossa frente. Ele percebeu que havíamos entendido a sua piada. Muito sem jeito perguntou da onde éramos e, quando falamos com todo o orgulho que éramos gaúchas, as portas do metrô se abriram para a nossa salvação. Saltitamos até o chão firme. Risadas e conversas altas nos deixavam lá atrás.